sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Gigante dos palcos*



* Publicado na revista Contigo!, outubro de 2005

LIRA NETO

Os gestos são lentos. Os passos, curtos. Paulo Autran desce do carro, um fusca cinza, atravessa devagar a calçada e chega à porta do teatro. É a imagem de um homem frágil, que arrasta com dificuldade o peso dos seus 82 anos de idade. A despeito disso, solta generosas baforadas do inseparável cigarro e retribui com um sorriso, galante, os acenos da moça na portaria. “É ele!”, exclama uma senhora que passa na rua, cutucando o braço da amiga ao lado. “É mesmo, é ele!”, responde a outra.

Sete e meia da noite. O teatro ainda está vazio. Pouco mais tarde, cerca de 600 pessoas o aplaudirão de pé. Mas, por enquanto, Autran atravessa lentamente, na penumbra, o deserto de poltronas cor de vinho, em direção ao camarim, onde uma profusão de flores o aguarda. Orquídeas, copos de leite, rosas vermelhas. Ele sorri, confere um ou outro cartão, bebe água de coco e pergunta se o gravador já está ligado. A fala sai expressiva, mas pausada, entrecortada por insistentes pigarros. Por vezes, vira o rosto de lado, para ouvir melhor a pergunta, com a ajuda do aparelho auditivo. Entre uma resposta e outra, ajeita os óculos de hastes prateadas sob o nariz adunco e morde os lábios finos.

Quem dali a uma hora e meia o vir subir ao palco, transfigurado, esbanjando vitalidade, não reconhecerá esse homem de olhar meio vago, as mãos enrugadas, pousadas sobre as pernas. De fato, trata-se de uma metamorfose. Em cena, os gestos lentos e os passos curtos dão lugar a uma interpretação impecável, em que a agilidade dos movimentos e a fala límpida saem carregadas de magnetismo. “Quando o personagem tem mais energia do que eu, dou um jeito de buscar, lá dentro de mim, alguma energia extra para entrar na pele dele”, explica. “Na vida real, gasto pouca energia, vivo em baixa voltagem”, diz.

O premiadíssimo ator poderia ser, hoje, apenas um advogado aposentado. “Escapei de ser um velhinho ranzinza”, comenta. O palco o salvou, garante. Aos 27 anos, trocou o diploma em Direito por um convite da atriz Tônia Carrero para encarnar Zeus, o deus grego, na peça Um Deus Dormiu Lá em Casa, de Guilherme Figueiredo. Era o início de sua carreira como ator profissional. “Passei um mês sem saber se deveria ou não aceitar o convite; aceitei, e foi a decisão mais acertada de minha vida”, relembra. “Do contrário, continuaria a ser péssimo advogado e, como todo mundo que passa a vida a fazer o que não gosta, seria um homem infeliz, intolerável”, observa, rindo para si mesmo.

Antes de viver Zeus nos palcos, Autran havia feito apenas teatro amador. De lá para cá, perdeu as contas de quantos personagens representou. “Só sei que nenhum outro autor brasileiro pode dizer que conseguiu montar um repertório igual ao meu”, gaba-se, com justificada imodéstia. Afinal, seu currículo exibe montagens de textos dos maiores mestres da dramaturgia universal: Shakespeare, Molière, Ibsen, Brecht, Pirandello, entre outros. No cinema, bastaria citar a participação histórica em Terra em Transe, de Glauber Rocha. Mas ele próprio diz que um dos trabalhos que recorda com mais carinho é mesmo uma encenação familiar, quando de calção vermelho e chifres de papel, aos oito anos, fez o papel de diabo, numa peça escrita pela irmã. “Comecei bem, não foi?”, brinca.

Autran nasceu quando rufavam os tambores do 7 de setembro de 1922, centenário da Independência. O médico profetizou: “Esse menino vai ser general”. Logo constatou-se que o doutor errara feio. O garoto, sensível, gostava mesmo era de ler poesia e ir ao teatro. O pai, delegado de polícia, ganhava as entradas de graça e as repassava ao filho, que acompanhava sozinho, de calças curtas, os espetáculos em cartaz na capital paulista. Outro divertimento era a brincadeira de “estátua”, quando disputava com as irmãs para ver quem conseguia ficar imóvel por mais tempo, sem piscar o olho ou trocar de posição.

Por trás dos óculos, os olhos de Autran brilham ao recordar a infância. Nessa hora, nota-se mais claramente um aspecto singular em seu rosto: um olho é verde; o outro, castanho. “Tem gente que convive anos comigo e não repara nisso”, diverte-se. Da época de menino, diz guardar principalmente o gosto pela leitura e uma insuspeitada timidez. Os livros, tomava emprestado na estante da mãe de um vizinho e os lia trepado em um pé de acácia no quintal. A timidez ele diz que disfarçou, ao longo do tempo, com ajuda da profissão. “Creio que, no fundo, os atores são pessoas introspectivas; na hora que atuam colocam para fora aquilo que não conseguem expressar de outra maneira”, teoriza.

Talvez seja essa antiga introspecção infantil que tenha feito de Autran um homem reservado. Avesso a invasões de privacidade, sempre conseguiu impor respeitosa distância em relação a sua vida pessoal. Qualquer pergunta mais íntima é respondida com ares de cortesia, mas sempre com monossílabos, como se estivesse gentilmente convidando o interlocutor a pular para a próxima indagação. “Não faço como essas jovens atrizes que namoram e ‘desnamoram’, com um e com outro, apenas para virarem capa de revista”, critica.

Ultimamente, Autran também não tem economizado farpas à televisão. “Nunca mais quero fazer tevê”, anuncia. “Dá muito trabalho, é uma canseira sem fim, e a programação está cada vez mais burra”, diz ele, que em 56 anos de profissão só fez três novelas – “Pai Herói”, “Guerra dos Sexos” e “Sassaricando” – sempre com intervalos de quatro anos entre elas. “Na tevê, só me dão papéis de débeis mentais”, queixa-se.

Segundo Autran, a idade tende a tornar os indivíduos mais seletivos, mais conscientes de suas possibilidades e limitações. “A natureza é sábia, nos dá e nos tira tudo no devido tempo”, filosofa. “Sempre adorei dançar; hoje não conseguiria rodopiar por aí. Em compensação, não sinto mais a mínima vontade de cair na dança”. Homem de hábitos simples, hoje sai pouco de casa, apenas para ir ao teatro, ao cinema ou ao restaurante de estimação. Roupas, só compra quando viaja. De quando em vez ainda se arrisca a uma ida à livraria ou à loja de discos. “Detesto rock e nunca consegui gostar de jazz”, assume, fã ardoroso de MPB. “Admiro Chico Buarque e Caetano Veloso, mas ando ouvindo, com prazer, Zeca Baleiro”, diz, acendendo mais um cigarro. Fumar é também um de seus prazeres? “Não, isso não é prazer; fumo porque sou burro mesmo”.

E como fuma, esse Autran. Queima um maço de cigarros por dia. Acorda tarde, às 10 da manhã. Lê os jornais – “a política e essa roubalheira toda andam me tirando do sério” –, faz alguns telefonemas, almoça, volta para a cama, tira um cochilo, levanta e prepara seu programa de rádio, na BandNews, de São Paulo, em que lê trechos de clássicos da literatura. Depois, vai ao teatro ensaiar. À noite, na cama, pega um livro até ser rendido pelo sono. Na cabeceira, Guimarães Rosa e Eça de Queiroz, autores que lê e relê desde os tempos do velho pé de acácia da infância.

Autran casou, de papel passado, em 1999. Até então, era considerado titular absoluto no time dos solteirões convictos. Até colegas mais próximos se surpreenderam quando ele, aos 77 anos, anunciou que deixaria a vida de celibatário para unir-se à também atriz Karin Rodrigues, uma amiga há mais de 30 anos. Hoje, uma vez por semana, Autran e Karin recebem alguns poucos convidados para animadas partidas de tranca, jogo de cartas, variante do buraco. “Jogo bem, mas Karin é que tem uma sorte descomunal no baralho”, revela. “Esse negócio de sorte no jogo, azar no amor, felizmente, não funcionou com ela”, graceja, em um dos poucos momentos em que se permite falar da vida conjugal.

Octogenário, faz planos para o futuro. Um deles é contracenar com Karin em um texto escrito especialmente para os dois, prometido pelo dramaturgo Mario Viana. Outro é montar um clássico de Molière, de quem já encenou três peças, As Sabichonas, Tartufo e O Burguês Fidalgo. “Não digo qual é dessa vez porque podem roubar minha idéia, como já fizeram antes”, afirma, precavido. “Sei que não sou mais nenhum menino, mas espero que o tempo que me resta seja muito bom”, diz. “Claro que tenho saudade de tanta coisa boa que vivi, mas não sou um homem voltado para o passado, tenho os olhos no futuro”, assegura.

“Se tenho medo da morte? Sinceramente, não. Viver para sempre, séculos afora, seria uma chatice interminável”, observa Autran, que já escapou de um acidente que o deixou dez meses prostrado numa cama. Era 1963, seu primeiro fusquinha capotou, ele foi cuspido para fora. Quebrou o fêmur direito, os ossos do ombro e as costelas do lado esquerdo. Nos anos 90, novo susto: foi submetido a uma cirurgia no coração. Hoje, carrega cinco safenas. “Viver é bom porque existe a certeza da morte”, diz, com ar professoral.

A essa altura da conversa, Autran parece exausto. Talvez tenha se estendido por mais tempo, ou por mais assuntos, do que desejava. Levanta-se, acende o terceiro cigarro. O relógio indica que está quase na hora da metamorfose noturna. Compreende-se que ele prefira ficar só neste momento que antecede sua subida ao palco. Seu desejo, claro, é uma ordem.

Durante duas horas, a platéia assistirá a mais um desempenho inesquecível desse ator que é uma das poucas unanimidades nacionais. “Não gosto de ser considerado uma unanimidade; apenas faço meu trabalho bem”, havia dito alguns minutos antes, a fala cansada, no camarim. Agora, na peça Adivinhe Quem Vem Para Rezar, de Dib Carneiro Neto, no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, ele interpreta três papéis, um atrás do outro, sem perder o fôlego. Dirigido por Elias Andreato, contracenando com Cláudio Fontana, Autran rejuvenesce, cresce em cena. Anda rápido, gesticula na medida exata, a voz sai correta, sempre no tom certo. Seria realmente o mesmo homem de há pouco, quase extenuado, sob as luzes do camarim?

Quando as cortinas fecham, a platéia continua aplaudindo-o, por vários minutos. “Um gênio” – é o comentário que se ouve em meio à fila de saída. “Um gigante” – alguém emenda. Meia hora depois, quem passasse ali, pela rua Augusta, bem diante da porta do Procópio Ferreira, veria esse gigante, agora de novo um homenzinho miúdo, atravessando a calçada, em direção ao carro parado rente ao meio-fio.

Foi, aliás, exatamente naquela mesma rua Augusta que, muitos anos antes, Autran viveu, ainda menino, em uma casa com galinhas no quintal e junto a um pé de acácia que nunca mais lhe saiu da lembrança. O tempo passou e, hoje, não se vê mais acácias na Augusta, uma das ruas mais movimentadas do bairro de Jardins, em São Paulo.

Aquele homem grisalho, entretanto, como havia dito mais de uma vez durante a entrevista, recusa-se a viver do passado. “Tenho os olhos voltados para o futuro”, fizera questão de repetir diante do gravador ligado. Mas é hora de ele ir para a casa, pegar um livro na estante, esperar o sono chegar. Amanhã será outro dia, com nova metamorfose, novos aplausos. Por hoje, o Procópio Ferreira apaga as luzes.

Paulo Autran caminha na calçada. Seus gestos são lentos. Os passos, curtos.

2 comentários:

Maurette disse...

Liguei o computador, acionei a pesquisa do Google, amanheci com teu texto. A melhor companhia que poderia ter para o luto, mais que necessário, por esse grande homem que acaba de passar à história. A reverência e o carinho com que você tratou a história e as verdades do Paulo Autran que é um pouco de todos nós me emocionou muito.
A notícia me chegou ontem à noite, enquanto falava com um amigo de Portugal no msn, que acabara de ler a notícia num site de informação. Fiquei paralisada e triste pela perda e também por não ter sido precavida com a volatilidade do tempo e nunca ter abraçado esse homem, nunca ter dito o quanto gostava dele, nunca ter tirado partido dessa "intimidade mágica" que nos aproxima dos verdadeiros ídolos que pautaram a nossa vida pelo exemplo, pela força da personalidade, pelo talento.
Obrigada por partilhar essa jóia de texto, num momento em que eu em particular preciso muito, mas decerto muito mais gente também precisa.
Maurette

Kelsen Bravos disse...

Massa!